Autor João Batista Azevedo *
Há muito queria escrever sobre as coisas que existiam na minha terra e hoje não tem mais, ou é muito difícil de se encontrar. E a penca de recordações é enorme. Para tanto, tive que fazer uma verdadeira regressão mental. Um mergulho nostálgico. Certamente não mencionarei tudo porque uma boa parte encontra-se armazenada no baú do esquecimento. Mas procurarei ser fiel às minhas lembranças: as veredas por onde caminhei, os frutos que saboreei e a experiência de vida que preencheu os dourados anos da minha infância.
Retrocedi na memória e me vi nos meus dias em férias na casa de meus avós maternos no povoado Boticário, em São João Batista – uma reentrância de campo onde se espalhava um extenso tapete verde de capim de marreca.
Às primeiras chuvas, o campo se enchia e logo vinha a vegetação típica emergindo do solo submerso. Eram as orelhas-de-veado, os pajés, as vitórias-régias, as gapeuas, os guarimãs, que logo recebiam as primeiras japeçocas em seus acasalamentos e berçários. Nas primeiras horas daquelas manhãs ou nos fins daquelas tardes, ouvia-se o cantar delas que cruzavam o estreito ressaco de enseada em direção à casa de Seu Doquinha ou lá pras bandas do Urucu.
Era comum se olhar, singrando os campos nunca cerca- dos, pessoas que faziam daquele habitat o seu próprio sus- tento e meio de vida. As canoas e os marás eram utensílios de uso de todos que por ali moravam.
A parte alta de terra começava com um rosário de quirizeiros, cujos frutos perfumavam o ambiente em suas safras. Os tarumãs e as ingás também ganhavam aspecto em meio ao arvoredo nativo. Mais no alto, sobressaiam-se as casas dos moradores com seus quintais e roças.
A casa do meu avô, Heráclito, ficava na parte mais alta. Na frente, um terreiro sempre limpo onde pastavam os animais e era improvisado um campinho de futebol. Do lado, a velha “casa-do-forno”. Mais para a direita ficava a casa de Seu José Castro, enquanto para o lado esquerdo morava o ranzinza Seu Zé Costa.
Meu avô, cuja fisionomia me foge à memória, era um senhor severo, daqueles que empenhavam a palavra como a honra maior de um homem. Minha avó, Andrelina (a quem nós chamávamos carinhosamente de Delica), era extremamente dócil. Tinha nos seus pequenos olhos a profundidade de um azul-marinho. Era ela quem nos acolhia, quando das travessuras infantis e do relho que era prometido e quase sempre cumprido.
Afora a casa de moradia, quase sempre se tinha um poço no quintal, além de uma sentina, um chiqueiro, um galinheiro e uma estrebaria. A primeira parte do quintal era constituída de algumas árvores frutíferas, como limoeiros, laranjeiras, tanjarineiras, algumas bananeiras e mangueiras. Sobressaia-se também um jirau e uma armação de paus que, fincados no chão, se cruzavam em xis para o suporte de canteiros suspensos, onde se plantavam as ervas e os temperos caseiros. Muito difícil encontrar-se um quintal assim hoje em dia.
Do lado da estrada que vinha até a casa de meu avô, uma frondosa mangueira nos presenteava com uma espécie rara de manga: a sapatinho. Confesso que nunca a vi em outro lugar. Acho que era o último exemplar da espécie. Era uma fruta de tamanho pequeno, mas de um sabor agridoce sem igual. Era a preferida dos bezerros que costumavam por ali pernoitarem.
Outras plantas de grande porte também compunham a beleza ímpar daquele lugar. Nelas costumavam pousar exemplares de tucanos, ainda que raros. Mas eram comuns os bicos-de-brasa e os os japis – estes mantinham, em uma grande árvore, seus ninhos bem trançados que balançavam ao sabor do vento matinal. Por ali também passeavam as rolinhas “fogo-pagô” e as pipirinhas pardas e azuis. Nas roças, nos arrozais, faziam algazarra os curiós, caboquinhos e bigodes. Todos livres, leves e soltos a grazinarem suas sinfonias nas manhãs de minha infância.
Entre as astúcias dos meninos daqueles idos, uma era imprescindível. Garoto que se prezasse valente, sagaz e traquino tinha que ter uma baladeira, uma cordinha, ou um pequeno cabresto, a fim de campear os carneiros que pastavam soltos nos campos e capoeiras. Os machos nos serviam de montaria, enquanto as fêmeas quase sempre tinham outras utilidades.
No retorno para a casa paterna, exceto a responsabilidade de ir para o Grupo Escolar e para a aula particular (coisa que sempre fomos obrigados a fazer, eu, meus irmãos e muitos da minha época – na casa de Dona Ubaldina), a vida seguia seu curso normal de infância interiorana. Uma pelada nos campinhos improvisados, o jogo de bolinhas, a bola de meia, o dinheiro de carteira de cigarros, os chevrolets feitos de latas de sardinhas com pneus de rolhas de vidros de penicilina, além de algumas tarefas caseiras, como o recolhimento crepuscular dos animais e o agasalhar de algumas poucas criações. Isso era muito comum nas famílias da época.
Algumas vezes, em períodos mais estios, os animais se afastavam pra mais longe e não retornavam para casa ao cair da tarde. Era certo que no dia seguinte tínhamos que ir pro- curá-los. O rumo era os povoados Arrebenta, Cazumba, Jamari e Candonga. Às vezes se tinha êxito, mas quando não, a busca se repeteria no dia seguinte.
Nessas andanças por entre as capoeiras, uma fartura de frutos do mato sempre apareciam do nada, como se qui- sessem nos encantar com os seus sabores silvestres. Eram maracujazinhos-do-mato, murtas, goiabas-araçás, maria-pretinhas, cauaçus e os deliciosos tucuns-verdes. As amejubas eram raras, mas com faro apurado podiam ser encontradas. Das palmeiras diversas, a meninada se deliciava com as ma- caúbas e os marajás. Nos campos, os bandos de graúnas de peito vermelho faziam seu balé de cores e cantos. Tudo ali existia diante dos nossos olhos… Hoje, quase não se avista mais essas maravilhas do interior baixadeiro.
A procura pelos animais de casa me rendia um prazer imensurável de liberdade e conhecimento. Em algumas vezes, eu, perdido entre as guloseimas do mato, esquecia até da razão de estar naquelas peregrinações, enquanto o burro e o cavalo faziam o caminho de volta pra casa e chegavam na minha frente, me acarretando, vez por outra, uma corretiva pisa por causa da vadiagem.
Já na boca da noite, era preciso tomar banho às pressas, antes que os caburés começassem seu canto noturno. Morria de medo. Precisava estar preparado para ouvir as histórias de Dona Palica, que, entre uma cachimbada e outra, contava para a criançada da redondeza as estórias de reis e rainhas de um reino distante, bem como as dos bichos, em especial as de Coelho e Tia Onça, as que mais me encantavam.
Assim avançava a noite. A lua cintilante nos convidava para a brincadeira de “caí no poço”. Quando chegava a hora de dormir, o Pai-Nosso e a Ave-Maria nos davam a sensação de serenidade, acalento, proteção e guarda. E assim embalávamos nossos dias na pureza da vida mansa e pacífica.
Essas reminiscências, hoje, são como um filme nas lembranças que conservo em minha memória e que o tempo não me deixa viver outra vez.
Crônica publicada no Livro ECOS DA BAIXADA, páginas 78/82.
* João Batista Azevedo é natural de São João Batista (MA). Grduado em Letras pela UFMA, professor e editor do blog “São João Batista On-Line”.
parabéns meu amigo, bom demais.
Parabéns por mais essa conquista.