O Baixadeiro

Autor Manoel de Jesus Barros Martins

O baixadeiro é um ser preponderantemente transicional! Na beira do campo, na beira de mato, na beira do rio, na beira do lago e/ou na beira do mangue, esse personagem arquiteta e constrói sua vida transitando com folga e com conhecimento de causa por dualidades recorrentes e renitentes que são presenças indissociáveis dessas realidades.

Beira do campo é a maneira pela qual é denominada tanto a orla que toca a beira de mato quanto a própria vastidão dos campos abertos que configuram a Baixada. Imagem semelhante se aplica à beira de mato: esta é tanto a fralda que demarca o encontro com o campo quanto as zonas mais interiores, conhecidas também simplesmente como matas.

Beira de rio é a área contígua a toda a extensão do rio. Seus contornos são definidos pela geografia das áreas atravessadas pelo curso d’água e pela gente que nelas habita.

Beira do lago é a ambiência que encapsula ponderáveis depósitos de água, de cuja movimentação sazonal decorre a fartura e a carência vivenciadas mais ou menos pelos contingentes ali incrustados.

Beira do mangue é uma zona rica, variegada e inóspita que margeia os domínios de São Marcos. Para ela são drenados os cursos d’água que irrigam campos, matas, rios e lagos que perfazem a Baixada.

Em plena consonância com os dois períodos marcantes do ano, em cada uma dessas áreas da Baixada viceja uma fauna e uma flora típica e esplendorosa.

É nesse cenário que o baixadeiro forja a sua vida cotidiana, sob a regência onipresente ou de muita água e/ou  de muito calor. Isso é decorrência da definição natural e da experimentação histórica de duas estações possíveis na Baixada: a das cheias (no assim dito inverno) e a das secas (no assim conceituado verão).

Muito frequentemente, grosso modo, de janeiro a junho, o baixadeiro está às voltas com a intensidade das chuvas que produz as cheias. É tempo de enchente. Em qualquer proporção, elas invadem os ambientes baixadeiros e os modelam em proporção idêntica à modelagem das vidas que neles habitam. Nos matos surgem as famosas e reminiscentes estradas fundas, sedimentadas por espessos e pegajosos lamaçais, que infernizam trajetórias ordinárias de transeuntes e animais de carga ou de sela. Nos campos, a enchente suplanta a vegetação remanescente da seca e desenha eventuais e estratégicos tesos, nos quais se refugiam baixadeiros em busca de salvação para sua família e seus animais. No mato, no campo, no rio, no lago ou no mangue as águas enchem de vida a alma baixadeira.

De julho a dezembro, a mudança é aguda e cortante. As águas vazam dos matos, dos campos, dos rios e dos lagos e se somam e somem na baía de São Marcos. Desse contato prolífico restam registros estuarinos de riqueza incomensurável. É nesse contexto que o abaixamento se pronuncia. A seca avança. Os cenários campestres vão sendo progressiva- mente moldados pela torroada, cuja configuração floresce e enverdece e depois … fenece. A vazante se agiganta. Por bom tempo, as baixas resistem como repositório de águas e de muita vida. Delas, o habitante mais próximo usa sem limites a fartura finita e providencial.

Enfim! O baixadeiro é um ser transumante por excelência! O fio da navalha das cheias e das secas dá a esse personagem o norte para que ele trace seus movimentos e almeje sucesso em seus interesses. Em decorrência de seus afazeres mais imediatos, um bom número dos habitantes das beiras de mato, de campo, de rio, de lago e de mangue vive indistintamente em uma ou outra das beiras, no inverno e no verão. A recorrência das taperas é um registro desses movimentos.

Crônica publicada no Livro ECOS DA BAIXADA, páginas 132/134.

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