Eu perdi o padrinho Sebastião Furtado

Autor Nonato Reis*

Uma semana depois do falecimento da Madrinha Cici, foi a vez de o padrinho Sebastião Furtado fazer o mesmo caminho do plano celestial. Desnecessário dizer o quanto isso me afeta. O padrinho faz parte da minha infância e de toda a minha vida, como a seiva que percorre o caule e as folhas da árvore. Reproduzo aqui a crônica que lhe fiz para o livro A Fazenda Bacazinho, que mostra a sua importância para o Ibacazinho e também para Viana.

SEBASTIÃO FURTADO, A ANDORINHA QUE VEZ VERÃO

Dizem, e isso vem da Grécia antiga, que uma andorinha só não faz verão. Sebastião da Silva Furtado, hoje com 85 anos, pregou esse postulado de Aristóteles e o refez. Agindo solitariamente, confiando apenas na força dos seus princípios, fez história em Viana. Numa época em que a voz que se ouvia era a dos quartéis e a lei que pairava sobre todos era a dos fuzis, ele deu as costas para o regime, elegeu-se vereador por dois mandatos, tornou-se presidente da Câmara Municipal e quase chegou lá, como prefeito da cidade.

Os anos 50 foram difíceis. Perplexo, o país assistiu ao suicídio de Getúlio Vargas. No Maranhão, São Luís foi palco de uma greve política sangrenta, que tentou impedir a posse do governador Eugênio Barros, eleito por força de um processo eleitoral viciado. A Baixada Maranhense padeceu com a pior estiagem de todos os tempos. Em Viana, o Igarapé do Engenho, então perene e abundante, secou e o seu leito virou estrada de carro de boi.

É nesse ambiente conturbado que o jovem Sebastião começa a escrever os capítulos mais importantes de sua vida. Conhece Ceciliana, então menina de 16 anos, e com ela decide trocar alianças. ‘Raptou’ a garota e a levou para a casa de um parente. À noite, o dono da casa tentou colocar o casal em quartos separados. Sebastião reagiu. “Eu não roubei mulher para dormir sozinho”. Pegou a moça e a levou para a casa dos pais dele que, a contragosto, tiveram que “engolir” a decisão do filho.

Trabalhou duro com o pai na roça e na pequena criação de gado. Um dia o padre Manoel Arouche, vigário de Viana, chamou Antoninho Furtado, pai de Sebastião, e fez-lhe o convite. Queria que ele cuidasse do gado da Santa (sim, nessa época, Nossa Senhora da Conceição, padroeira de Viana, era uma das maiores fazendeiras da região).

Antoninho chamou o filho e disse que só aceitaria a proposta, se ele o ajudasse. Sebastião coçou a cabeça, não tinha nada a perder. “Pai, se outros toparam, por que a gente vai desistir? A gente encara e mostra que sabe fazer”. Vaqueiro da Santa, ganhou visibilidade. Em pouco tempo tornou-se presidente da Associação dos Criadores do Município.

Ele tinha um açougue no mercado municipal. O lugar era uma bagunça. O tráfico de influência predominava. Quase nunca sobrava carne para os pobres. O prefeito Lino Lopes baixou portaria regulamentando a venda do produto. Todos teriam que obedecer à ordem de chegada. Um emissário do prefeito foi direto ao balcão. Queria quatro postas de carne. “O senhor vá para a fila”, advertiu Sebastião com sua voz grave e decidida. O emissário resistiu. Estava ali a mando do prefeito, não podia ir para a fila. “Por representar o prefeito o senhor devia ser o primeiro a obedecer à ordem dele. Ou o senhor entra na fila ou não lhe atendo”.

Dom Hélio de Campos chegara a Viana para chefiar a diocese local, substituindo a Dom Hamleto de Angelis. De visão política progressista, líder por vocação, Dom Hélio percebeu o isolamento da cidade do resto do Estado. A única ligação com São Luís era feita por via marítima, em lanchas que transportavam desde manufaturas a animais e gente. As viagens eram longas e perigosas.

Dom Hélio entendeu que era preciso construir uma estrada de rodagem ligando Viana a Arari. Deu início então a uma luta inglória, que o levaria diversas vezes a São Luís e Brasília, tentando convencer as autoridades a mandar construir a estrada. Mobilizou as entidades de classe e o povo. Foi como atear fogo em canavial.

De pronto recebeu o apoio de Sebastião Furtado, então líder classista rural, e também do padre Eider Furtado, tio de Sebastião e adepto da Teoria da Libertação. “A gente começou a entupir a mesa do ministro Mário Andreazza (Transportes) de telegramas, cobrando a licitação da estrada”. Ele deve ter ficado zonzo com tanta aporrinhação”.

Dom Hélio foi a Brasília. Na Base Aérea encontrou com José Sarney e pediu-lhe apoio, que o negou. “Sarney disse que o projeto não era viável, que a Baixada era uma região pobre”. Dom Hélio não desistiu, percorreu a esplanada dos ministérios, solicitou audiências. Em São Luís pediu o apoio do governador da época, que também o negou. A luta prosseguiu até que o Estado, vencido, decidiu abrir licitação e assinar a ordem de serviço.

À frente de uma comissão, Sebastião Furtado veio a São Luís assistir ao desfecho do processo licitatório no DER/MA. O grupo se alojou no Seminário Santo Antônio, onde confeccionou faixas e cartazes. Na volta a Viana, encontraram a cidade em festa. Uma multidão retirou Sebastião do ônibus e o carregou nos braços, agradecida. “Foi uma emoção enorme. Jamais esqueci”.

A conquista da rodovia deu-lhe visibilidade. Em 1972 Dom Hélio o chamou para comunicar que ele seria o candidato da Igreja e dos trabalhadores rurais à Câmara Municipal. “Mas como? Eu não entendo nada desse negócio de política!”. A decisão estava tomada. A igreja jamais se envolveu abertamente na campanha, mas ele recebeu o apoio em massa do sindicato de trabalhadores rurais e, concorrendo pelo MDB, elegeu-se único vereador de oposição.

Começava a jornada solitária da água contra o rochedo. Combateu a gestão de Walber Duailibe do começo ao fim. Na Câmara, que tinha 9 vereadores, o placar a favor do prefeito era vergonhoso: 8 a 1. Mesmo assim, articulou e conseguiu o cargo de secretário geral da Mesa, que na hierarquia do parlamento é o segundo em importância.

Seu primeiro projeto restabeleceu a dignidade da Câmara, ao transferir a sede do Parlamento, alojada no prédio da prefeitura, para outro imóvel. “Era um absurdo a Câmara funcionar ao lado do gabinete do prefeito, como um biombo”. O prefeito não queria o projeto, mas Sebastião, mesmo sozinho, articulou com os colegas de ofício e sua proposição foi aprovada por unanimidade.

Também apresentou projetos para a construção de escolas em duas localidades. O prefeito, dessa vez, agiu rápido e a Câmara rejeitou as matérias. Sebastião não se deu por vencido. Fez reuniões com as comunidades beneficiadas pelos projetos e, em sistema de mutirão, ergueu as duas escolas em barro e palhas de babaçu. Os salários dos professores pagava com recursos próprios, isso numa época em que os vereadores não possuíam remuneração.

Em 1976 concorreu à reeleição e ganhou. Na hora de montar a chapa da Mesa Diretora, aplicou um golpe de mestre. Havia dois grupos com igual número de vereadores disputando a presidência, um ligado ao prefeito eleito e o outro, ao candidato derrotado. Era o fiel da balança. Para qualquer lado que pendesse, levaria a eleição. Foi assediado pelos dois grupos e para todos repetiu a mesma história: seria candidato de si mesmo. Na última hora o prefeito o procurou e aceitou que figurasse na cabeça da chapa. Tornou-se assim presidente da Câmara, sem pertencer a grupo algum.

Era o tempo das baionetas e o verde-oliva metia medo. Um dia recebeu a visita de um coronal do Exército, que veio de Fortaleza com a missão de fazer aprovar um projeto de interesse do bispo Dom Adalberto. Sem meias palavras ordenou que Sebastião aprovasse a matéria. “Quem aprova ou rejeita são os vereadores, não o presidente”. O militar não quis saber, queria o projeto aprovado por ele e ponto. “Então o senhor faça aprovar um projeto que dê essa prerrogativa ao presidente”, rebateu.

Em 1982, lançou-se candidato a prefeito, enfrentando duas forças exponenciais. Teve quase 3.000 votos. O eleito recebeu pouco mais de 4.000. “Perdi porque não tinha apoio político nem material, mas o povo me apoiou”. Deixou a política e foi cuidar da vida. No dia em que completou 80 anos, comemorou a data ao lado da família e dos amigos. Eu quis saber o que passa pela cabeça de quem chega a essa idade, lúcido e admirado. “Dá vontade de ser eterno, de gozar a vida e jamais morrer”. A história tem a capacidade de imortalizar seus personagens.

* Nonato Reis é natural de Viana. Jornalista, poeta e escritor. Foi correspondente em São Luís da Folha de São Paulo em 1993 e colunista do Jornal Pequeno, no período de 2011 a 2017.

Deixe uma resposta

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.