Biscoitos recheados

Autora Elinajara Pereira Castro

Neste início do mês de julho, fui a um grande supermercado em São Luís, onde moro atualmente, para fazer as compras mensais como de costume. Em minha solidão, empurrando o carrinho, fui pensando nas coisas que tanto me encantavam quando era criança, como por exemplo, biscoitos recheados. Em minha casa, era motivo de briga, sim – brigávamos e mamãe sempre era a juíza, e dava o veredicto: “no próximo mês, não trago mais!”. Isso era suficiente para cessar as picuinhas, afinal, ninguém queria correr o risco.

Isso era lá pelo final da década de 90, no início dos anos 2000. Mamãe ainda era professora contratada; nessa época, era incerto receber o salário em dia – às vezes passava de três a quatro meses sem receber um centavo sequer. Quantas e quantas vezes ela saía de casa junto com outros funcionários para ir em busca de seu salário de madrugada, a pé ou de canoa até o povoado Jeniparana para então pegar o caminhão (pau-de-arara) até a sede e voltava sem nada! Esse trajeto tinha de ser em grupo, pois havia uma parte da estrada que acreditavam ser mal assombrada, e ninguém corria o risco de passar sozinho por lá. Somente depois do concurso público em 1997 é que um homem que morava na sede da cidade, chamado Bambu, começou a ir até pontal no caminhão. Como a estrada era muito ruim naquela época, não era difícil os passageiros terem que descer do caminhão para empurrá-lo, pois vez ou outra atolava.

Papai sempre saía para trabalhar e meu irmão mais velho assumia o comando da casa. A nossa casa era bem simples, feita de alvenaria, não tão pequena e nem muito grande. Ao lado da casa há um grande jardim com muitas flores que mamãe ainda hoje cultiva; no quintal, tem um pomar, muitos tipos de manga e banana e outras plantas frutíferas; ao lado do quintal, havia a rocinha onde tinha o plantio de mandioca e macaxeira, e na frente de nossa casa, no inverno, cria-se um pequeno lago do qual, particularmente, eu gosto muito.  A energia elétrica chegou em 11/10/1997 (é uma data importante para nós), mas foi no ano de 1998, ano de copa do mundo, que a televisão foi comprada. Era grande para a época, com 20 polegadas – nela assistimos quatro copas do mundo.  Tenho uma pequena lembrança de pessoas de povoados adjacentes (Buritizeira e Coelho) sentadas no chão da sala assistindo aos jogos da seleção brasileira, onde a viram perder a taça para a seleção francesa na disputa final.

Quando mamãe ia receber dinheiro ficávamos ansiosos e esperançosos.  Durante a manhã inteira não fazíamos nenhuma tarefa que papai havia nos incumbido, mas quando sabíamos que estava perto do horário em que mamãe iria chegar, começava o corre-corre. Os baldes deviam estar cheios, a casa varrida e eu, a caçula, devia estar arrumada e de cabelos bem penteados, e assim, os meninos dividiam as tarefas entre si: um ia encher água, outro varrer a casa e outras coisinhas que se faz para agradar a mãe e ser digno do prêmio: biscoitos recheados. Primeiro, mamãe trazia um pacote grande e era a maior confusão na hora de dividir, pois não era raro ouvir um grito de insatisfação: “mamãe, fulano ganhou mais do que eu”.  Então, ela passou a comprar um pacote para cada, de tamanho menor. Isso estimulou a união entre nós porque, quando os sabores eram diferentes, a gente trocava entre si e todos ficavam satisfeitos. Sempre tinha um espertinho que fingia comer tudo, mas, na verdade, escondia um ou dois biscoitos. Depois que todos já haviam terminado de comer, era a hora de tirar do esconderijo e comer na frente dos outros para fazer inveja.

Ao ouvir o barulho do caminhão de Bambu – Mercedes 710, cujo barulho do motor e cheiro de óleo é inigualável – já era a hora de ficar pronto para ir encontrar mamãe lá na estrada, uns 200 metros longe de casa, e nós íamos correndo ao encontro dela para ajudar com as compras. Às vezes, para a nossa maior tristeza e decepção, ela vinha de mãos vazias com uma expressão tão triste que já sabíamos o que era, mas ninguém falava nada. Só depois ela dizia: “não saiu dinheiro para os contratados”.  Eram palavras devastadoras. Em outras vezes, íamos para casa contentes, munidos de sacolas – eu, por ser muito pequena, carregava a mais leve possível, e ao chegar em casa tal qual como um pirata em busca de ouro, abríamos todas as sacolas em busca de…biscoitos recheados! Quando encontrávamos, a alegria era geral. Lembro-me da nossa alegria, dos risinhos e gritinhos de contentamento. Naquela época, essa guloseima era coisa valiosa, coisa rara… Para nós, tinha muito valor, afinal, crianças sempre se encantam com essas coisas que, para os adultos, não fazem o menor sentido. Quando mamãe foi aprovada no concurso público de 2002, as coisas mudaram para melhor porque era mais provável receber o salário na data certa, como tem sido atualmente, e assim nosso biscoitinho era garantido.

Hoje, passo em frente à seção de biscoitos no supermercado e eles não me atraem mais. Talvez por  não terem mais o sabor que tinha lá em 1999 ou no início dos anos 2000: o sabor de comer juntamente com os irmãos naquela algazarra toda, de saber que aquilo era só uma vez no mês; o sabor de algo raro, tão esperado, que quase toda criança gosta e que mamãe, mesmo com tão pouco recurso, fazia questão de comprar para nos agradar. Hoje eles não me atraem mais, porque talvez eu nem sinta falta deles, mas sim do momento em que ele significava tanto na minha infância, no interior de Bequimão, em meio àquele cenário rural, de campos e matas de fauna e flora riquíssimas. Entre tantas lembranças e tantos talvez, tenho apenas uma certeza: hoje eles não me atraem mais.