AQUELA VOZ NO SILÊNCIO

Por Gusmão Araújo*

Há um sopro de Deus entre a intimidade que me religa pelo umbigo a alguém inesquecível e a saudade que se alimenta do perfume do amor que permanece. Perfume de rosas!

 Na terra onde fui parido e o meu umbigo enterrado, especialmente após as primeiras chuvas do inverno, sinto um cheiro de chão peculiar, incomparável, que remonta à minha infância feliz. A ligação minha e da família com a terra é muito intensa. Cultivar a terra e produzir a própria comida que frutificava do chão fértil era tradição familiar, além das aventuras em pescarias muito prolíficas.

Na pequena comunidade Qindiua (terra abundante de doces) onde nasci, a doçura da vida era viver com simplicidade e obter da natureza os frutos emanados do céu. Quando eu ainda era muito jovem, a família migrou para a sede do município, Bequimão, singela e linda cidadela encostada entre o litoral e os campos da Baixada.

No novo lugar, a família cresceu e alcançou alguns laivos de prosperidade. Casa simples e típica, situada próximo à Igreja Matriz de Santo Antonio e Almas, quintal grande, cheio de árvores frutíferas e pequenas criações, cantoria de pássaros… Parecia um cenário perfeito pra se viver e sonhar.

Há uma marca entre mãe e filho que cicatriza mas não se apaga: o umbigo. Basta tocar no umbigo e o pensamento voa pra ela e uma caixa de boas memórias se abre. Aquela que me gerou e deu a vida pela minha, me alimentou por algum tempo por esse cordão vivo que depois se transformou numa marca indelével, a cicatriz do amor. Com o passar dos anos um outro cordão surgiu, como contas de um rosário – mãos que cuidam, abraços que acolhem, palavras que ensinam, conselhos que educam, sorrisos que encantam, gestos que eternizam o amor.

Na rede atravessada na varanda onde repouso por alguns instantes ao cair da noite, dirijo meus pensamentos para um tempo distante no qual contemplo o barulho matinal das crianças – eu e meus irmãos – e a voz doce daquela mulher simples que me gerou, gerando em mim também uma alegria que não cabe nos sentidos.

O lugar na varanda onde me encontro foi o mesmo espaço onde, no grande quintal, vicejou o jardim da minha mãe e, logo próximo, havia um recanto dedicado às brincadeiras intermináveis das crianças ao final da tarde.

Fecho os olhos e, intencionalmente, conduzo meus sentidos para cenas remotas, ricas em simbolismos e significados…

Enquanto “ela” regava suas plantas e se embriagava com o perfume das rosas – suas prediletas – corria os olhos ágeis em nossa direção. Do seu olhar saia uma voz inaudível e, ao mesmo tempo, perfeitamente compreensível. Parecia dividida entre conversar com as flores do seu jardim e cuidar, com o olhar altaneiro, os rebentos de seu ventre, pululando nos arredores. Em seu semblante havia uma certeza de que os rebentos banhados de terra eram seus verdadeiros tesouros os quais ela iria gastar uma vida para lapidar e fazê-los dignos de um futuro luminoso e da bondade de Deus. E fazer brilhar em cada um a luz de Cristo, conquistada nas águas do batismo.

Sempre que me colocava nessa situação, na rede na varanda, contemplando o infinito, conseguia congelar as imagens e eternizar um tempo que não morreu no passado. No inquietante e reconfortante silêncio do meu ser, com a pureza d’alma de uma criança, conseguia ouvir aquela voz familiar e insubstituível. Nessa condição, entre não estar acordado e não estar sonhando me permitia vivenciar uma realidade paralela que só amor era capaz de reproduzir e eternizar. Era como se sentar numa confortável poltrona para assistir a um filme ansiosamente aguardado. Há um sopro de Deus entre a intimidade que me religa pelo umbigo a alguém inesquecível e a saudade que se alimenta do perfume do amor que permanece. Perfume de Rosas!

De repente, aquela voz tão conhecida rompe o silêncio e ouço um chamado: “José, tá na hora de parar e se preparar para o banho”; ouvem-se outros chamados à prole: “João, Antônio, Francisco, Bal”…, chamados prontamente atendidos mesmo que não se desejasse que a tarde findasse. Em outro canto do quintal um grupo de quatro meninas também brincava de construir sonhos e, vez ou outra, aumentar o barulho do dia com gritos de alegria. Após os acenos, aquela nobre mulher, com cheiro de rosas, seguia na frente e nós, com cheiro de terra, a seguíamos com a justa obediência daqueles que respeitavam porque amavam.

Por vezes, perdia a noção do mergulho que fazia na nossa história comum e quão tênue era a linha que separa a realidade cotidiana e a alegria genuína esculpida no íntimo do meu coração. Quando parecia que ia acordar, procurava meu umbigo e começava tudo outra vez e aquela voz silenciosa se colocava dessa vez a cantar, fazendo-me adormecer e sonhar, como um menino da pequena Quindíua que não desejava crescer…

Aquela nobre mulher, que conversava com as flores e se encantava com a história de Maria Santíssima e Jesus partiu para o jardim celestial há tempos, por certo auxiliando Nossa Senhora em suas tarefas divinas, mas a sua voz continua ecoando silenciosamente na minha história, aquecendo minha realidade, remexendo meu umbigo e me renovando o encanto pela vida e pelas vidas que também tive a graça de gerar. São flores que também cultivo no jardim do meu coração.

Senhora Antônia, esposa de Antônio…

O seu amor me fez vencer a dor e os desafios E acreditar que o seu olhar

Sua voz

E o seu abraço Me fazem sentir

Que continuas aqui Bem perto de mim Como um anjo

A me proteger Do anoitecer Ao amanhecer

Sempre, Minha Querida Mãe!


 * José Ribamar Gusmão Araújo  é natural de Bequimão/Maranhão. Membro-fundador do Fórum em Defesa da Baixada Maranhense (FDBM), Gestor do Projeto Bosques na Baixada do FDBM. Engenheiro Agrônomo, formado pela UEMA. Mestre e Doutor em Agronomia/ Horticultura pela UNESP, Campus de Botucatu/SP. Professor Adjunto do Departamento de Fitotecnia e Fitossanidade (DFF)/CCA/UEMALeciona no Curso de graduação em Agronomia e no Programa de Pós-graduação em Agroecologia.

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